Jules Verne, 1828-1905, Stéphane Mallarmé, 1842-1898. Não parece, à primeira vista, uma conjunção estranha e herética?
Dou por evidente o antagonismo literário entre os dois escritores. Lembrar que Hetzel apresentou a Verne, no seu Avertissement de l'éditeur às Voyages et aventures du capitaine Hatteras, como um opositor de l'art pour l'art (« l'art pour l'art ne suffit pas à notre époque »). Todos sabemos que os gostos artísticos de JV eram bastante conservadores. Não demonstra nenhum interesse pelos poetas simbolistas, pelos pintores impressionistas ou por músicos como Debussy ou Satie, seus contemporâneos. Suas preferências literárias se explicitam, por exemplo, no capítulo X de Paris au XXe siècle, com a citação dos clássicos Hugo, Goethe, Heine, Musset, no que se refere à poesia, e, por outro lado, na sua sátira à música do futuro, « musique cacophonique », tema que reaparece em L'Ile à hélice, com a nomeação dos programas de quartetos de Mozart, Haydn, Beethoven, Mendelsson, e no máximo uma menção indireta a Saint-Saëns... O pianista dos rumorosos clusters, Quinsonnas, que pretende « étonner son siècle », parece uma caricatura premonitória de Schoenberg, cuja primeira peça dodecafônica sairia do piano... e assinala seguramente o desapreço de Verne pelas dissonâncias satiedebussyanas do seu tempo.
No entanto, eles foram contemporâneos, notáveis e notórios por mais de vinte anos, pelo menos de 1876 até a morte do poeta em 1898, por mais diversa que fosse a literatura que praticavam.
Mallarmé publicaria seus primeiros poemas em jornais e revistas em 1862, ainda muito jovem. Mas só a partir de 1876 se tornaria um autor mais evidente com o seu Après-midi d'un faune, acrescido no ano seguinte pela edição de Poésies. Quanto a Verne, já em 1863 faria grande sucesso com o livro, Cinq Semaines en Ballon, na sequência de peças de teatro e das primeiras obras em prosa.
Desde 1848 Charles Baudelaire vinha traduzindo contos de Poe. Mas foi a partir de 1856, com a publicação de Histoires Extraordinaires, que se tornou conhecido como o grande difusor da sua obra. Nouvelles histoires extraordinaires apareceria no ano seguinte. Les Aventures d'Arthur Gordon Pym, de Nantucket, o único romance de Poe, viria em 1858, vinte anos depois de seu lançamento nos Estados Unidos, com pouco sucesso e muita polêmica. Precisamente em 1863, Baudelaire revelaria ao público francês o não menos compreendido ensaio poeano, Eureka, e em 1865, Histoires grotesques et sérieuses. Não foi Baudelaire o primeiro escritor francês a chamar a atenção sobre Poe, mas foi « o intermediário essencial, maior, entre o escritor americano e, não somente a França, mas também toda a Europa continental », como acentua Michel Brix em seu ensaio « Baudelaire, disciple d'Edgar Poe ? » [1].
Apenas um estudo literário se destaca na vasta obra de Julio Verne. Justamente « Edgar Poe et ses oeuvres », estampado na revista Musée des Familles (1864) [2]. Nele reconhece a sua dívida para com o poeta francês. Além de enfatizar a grande afinidade entre Poe e Baudelaire, adota a tradução deste para as referências que extrai dos textos poeanos. Há quem sustente que Verne não dominava a língua inglesa e por isso teria recorrido às traduções de Baudelaire. De todo modo, o eventual desconhecimento do idioma não invalida o fato de que usou a tradução baudelairiana, com grandes elogios, e até uma comparação precisa entre o temperamento artístico dos dois escritores.
Entrelaçam-se, assim, as literaturas de Verne e a de Baudelaire sob o prisma do interesse pela obra de Edgar Allan Poe. Autor de imenso sucesso em seu próprio país e fora dele, porém desprezado pela intelectualidade francesa, que considerava o romance de aventuras literatura inferior, só na segunda metade do século XX encontrou Jules Verne a sua « re-visão », sem que chegasse ele, assim, a ver-se literariamente redimido em vida. É consenso geral que foi Michel Butor, um dos mais proeminentes autores do « nouveau roman », poeta e crítico, além de romancista, quem o ressuscitou para o respeito literário num estudo publicado em Répertoire 1 [3]. Precedeu-o Roland Barthes, num breve texto referido ao cinquentenário da morte de Verne, mas numa abordagem superficial que, mesmo comparando desfavoravelmente o Nautilus de Nemo ao « Le Bateau ivre » de Rimbaud, tem o mérito de haver chamado a atenção para as relações entre as duas obras [4].
No correr do tempo, à medida que começou a frutificar a reabilitação de Verne para os altos estudos literários, cresceu extraordinariamente a ensaística sobre a sua obra, analisada sob os mais variados aspectos. O livro Jules Verne: Narratives of Modernity, organizado por Edmund Smyth, reunindo ensaios de vários autores [5], dá uma medida da versatilidade com que ela é hoje vista. Tão grande a sua amplitude que é difícil abordar o tema sem pensar na hipótese de estar trilhando o caminho de uma interpretação já descoberta e palmilhada.
Foi a partir dessa época que passaram a ser realçados literariamente alguns traços peculares da estilística verniana, como a sua paixão pelos criptogramas, inspirada em Poe, e seu gosto peculiar pelos jogos verbais, anagramas, aliterações, paronomásias, e pelas enumerações surpreendemente sonoristas de vocábulos científicos, como em muitas passagens de 20.000 léguas submarinas, geralmente suprimidas nas edições populares.
Três páginas do poema de Mallarmé |
Não há registro de qualquer manifestação de Verne sobre as obras quer de Rimbaud quer de Mallarmé. Deste, no entanto, conhece-se uma apreciação sobre o autor de Le Tour du monde en quatre-vingt jours. Numa de suas crônicas, de 1874, para a revista que criou e dirigiu, La Dernière Mode, a propósito da representação teatral do famoso livro, alude a ela como cette féerie, ce drame, cet atlas vivant de géographie (...) « du très curieux Jules Verne », demonstrando que o poeta não era de todo indiferente ao celebrado criador das Voyages dans les mondes connus et inconnus.
São evidentes, na poesia de Mallarmé, os temas da viagem, do naufrágio, dos gelos e do branco, em muito devidos à herança de Poe e Baudelaire. Lembre-se o celebrado « Brise Marine » (1866) ou o menos cursivo « Le Pitre Châtié » (1887, primeira versão, 1864), onde o poeta é alegorizado como um nadador histriônico, o traidor que acaba por entregar a sua obra à água pérfida dos gelos. Não há como não associar tais peças da busca poética do desconhecdo ao imprevisto dos mares glaciais, renitentemente perseguidos pelas atormentadas viagens imaginárias de Verne, em Voyages et aventures du capitaine Hatteras (1864), Le Sphinx des glaces (1895) e em Vingt mille lieues sous les mers (1870).
Parece, no entanto, que a maioria dos estudiosos de sua obra não se deu conta da intertextualidade dessas obras com a de Mallarmé, tendo-se fixado na referência ao « Bateau ivre » e a Rimbaud.
O nome de Jules Verne não aparece no índice onomástico da longa tese de Thierry Roger (2008), L’archive du Coup de dés. Étude critique de la réception de Un Coup de dés jamais n’abolira le hasard (1897-2007), publicada em livro em 2010 (Gallimard), que identifica, pontualmente, todos os estudos conhecidos até então sobre o último poema de Mallarmé. Ouso imaginar, portanto, que os maiores estudiosos do poema de Mallarmé não se deram conta da aproximação que julgo vislumbrar entre as obras dos dois grandes autores.
Nesse sentido, chamou-me atenção um fato literário, cuja sincronicidade não vi assinalada quer nos estudos vernianos mencionados quer nos mallarmeamos, mas que me parece extremamente curioso e significativo.
Em 1897, um ano antes da morte de Mallarmé, publicam ele e Verne os seus mais arriscados livros. De Jules Verne apareceria Le Sphinx des glaces, a sua temerária continuação das Aventuras de Arthur Gordon Pym, de Poe : o romance verniano foi aparecendo em folhetins no Magasin d'éducation et de recréation [6], de 1o de janeiro a 15 de dezembro, e acabou sendo lançado em livro pelo editor J. Hetzel em 22 de novembro, na sequência das Voyage extraordinaires, com toda a pompa das publicações de luxo da coleção : 68 ilustrações, 20 grandes gravuras fora do texto em cromotipografia, por George Roux, e um mapa, do próprio Verne. Em 4 de maio de 1897, viria a público, estampada na revista internacional Cosmopolis a primeira versão de Un coup de dés jamais n'abolira le hasard. Publicação incompleta, sem o desdobramento das páginas pretendido por Mallarmé, mas seguindo aproximadamente as variações tipográficas espacializadas do poeta. Os originais enviados por Mallarmé haviam sido recebidos em fevereiro, conforme carta de 4 de março de André Lichtenberger, o diretor da revista. Hoje estão divulgados esboços manuscritos do poeta aos quais se atribuiram as datas de fevereiro-março.
Os temas do naufrágio e do acaso, que atravessam toda a obra de Mallarmé, são aqui decantados e elevados ao nível metafísico numa indagação alegórica sobre o sentido da existência e da criação artística. O poema a sintetiza num discurso fragmentário (« subdivisões prismáticas da idéia ») projetado tipograficamente sobre grandes espaços brancos do papel de modo a acentuar a dimensão icônica do texto. Ainda que a contrapelo do projeto narrativo de Verne, são aqui inúmeras as coincidências temáticas e verbais de ambos os escritores.
A paisagem imaginária das duas obras, pontuada por uma semântica onde repontam « le hasard », « la folie », « l'abîme », « le naufrage », entre reiterados termos náuticos e marítimos, apresenta enormes afinidades, apesar de sua antinomia. O « alvo » do gelo, nas viagens exploratórias de Verne aos polos, e a página branca e naufrágica de Mallarmé se cruzam, sob a influência compartilhada da derradeira aventura enigmática de Poe/Pym. Expressão « sintetico-ideográfica », uma, « analítico-discursiva » outra, para usar de uma fórmula apollinairiana. Mas parece impressionante para mim a afinidade entre o vocabulário de Verne e de Mallarmé, que retoma, em 1898, ano de sua morte, em 9 de setembro, o tema do naufrágio no poema sobre Vasco da Gama, « Au seul souci de voyager ».
Ambos os escritores idolatraram Baudelaire e, sobretudo, Edgar Allan Poe, que Mallarmé descobriu em 1860. Verne não tornou explícita em seus romances a admiração por Baudelaire, mas seu único ensaio crítico fala por si mesmo, e a presença do tema de l'inconnu, presente até mesmo nos subtítulos dos seus romances, acusa mais influência de Baudelaire (« au fond de l'Inconnu pour trouver du nouveau ! ») do que a de qualquer outro poeta. Ambos, à sua maneira procuraram chegar a uma obra totalizante e universal. Mallarmé « un livre qui soit un livre (...) : le Livre persuadé qu'au fond il n'y a qu'un (...). L'explication orphique de la terre (...) Prouver par les portions faites que ce livre existe, et que j'ai connu ce que je n'aurai pu accomplir » (carta a Verlaine, 16.11.1885); « un Livre, explication de l'Homme » (carta a Vittorio Picca, publicada em 27.11.1886). Verne : « Mon but a été de dépeindre la Terre, et pas seulement la Terre, mais l’univers, car j’ai quelquefois transporté mes lecteurs loin de la Terre dans mes romans » (1884). Mais : Verne : « ...pour les quelques ouvrages que j'ai encore à faire, et qui, dans ma pensée, compléteront la peinture de la Terre sous la forme du roman. » (carta a Louis-Jules Hetzel, filho do grande editor, 13 de outobro de 1890). E não seria o caso de contrastar o « Grand Livre » de Paris au XXe siècle, a obra que Verne escreveu e Hetzel recusou, em 1863, com o Livre ideal de Mallarmé ? Esse futuro « Grand Livre de la maison de banque », que Verne imaginou para os anos 1960, obra requintadamente tipográfica, com « ses encres multicolores » que « relevaient vivement les rapports et la pagination » e seus números onde se destavam, em cores complementares, os francos em vermelho escarlate e os centavos em verde escuro — alegoria profética da tirania financeiro-mercadológica dos nossos tempos ?
São dois « Livros » totalizantes e opostos mas que se encontram na famosa frase do poeta : TOUT EXISTE POUR ABOUTIR EN UN LIVRE. E que têm em omum, ainda, o referencial ligado à tipografia excepcional desses Livros imaginários, o de Mallarmé preludiado por seu Coup de Dés.
Timothy Unwin, em Jules Verne — Journeys in Writing [7], observa « a tensão dos escritos de Verne entre o seu projeto totalizante e universalista e a sua fragmentação », assinalada por vários estudiosos, e lembra que Marie-Hélène Huet vê, nas últimas obras vernianas, « um certo sentido de abdicação » em relação a um projeto que ele reconhece impossível, concluindo que « c'est ainsi que le projet ambitieux qu'Hetzel avait assigné au jeune écrivain se trouve realisé par son échec même » [8].
Mallarmé. Verne. Fracassucessos.
Tendo consultando abundante literatura sobre Julio Verne, só encontrei uma referência sobre uma aproximação entre as obras dos dois grandes escritores, sem que tenha podido precisar a sua fonte. Aparece ela, num texto não assinado que encontrei na Wikipedia a respeito de um outro romance da última fase de Verne, Le Testament d'un excentrique, publicado em 1899, dois anos após Le Sphinx des Glaces e Un Coup de dés [9] :
Dans Le Testament d'un excentrique, tout au contraire, les déplacements des concurrents ne s'exposent qu'au hasard, par les dés que fait rouler imperturbablement Tornbrock. Ils n'ont aucun moyen d'enrayer cette machine. Ils ne sont pas maîtres de leur destin, ils sont des pions aux mains du hasard, et, pour eux, aucune feuille de route. On peut penser alors au poème de Stéphane Mallarmé, Un coup de dés jamais n'abolira le hasard, d'autant que Verne cite le poète dans son roman.
De fato, apesar de tal citação não se referir Mallarmé, mas sim a versos de Leconte de Lisle, esse novo romance mais do que extraordinário tem tudo a ver com o Coup de dés mallarmeano, e quem sabe não terá sido de alguma forma influenciado por ele.
Le Testament d'un excentrique é um livro no qual o acaso e os dados desempenham um papel central.
Como assinala Marie-Hélène Huet, em sua introducão ao livro, na edicão Pléiade (2016) [10], foi ele escrito em 1897, entre 7 de março e 22 de setembro, entregue ao editor Hetzel em 28 de julho de 1898, apresentado como um folhetim no Magasin d'éducation et de récréation, de 1o de janeiro a 15 de dezembro de 1899, e por fim publicado em volume in 8o, ilustrado, em 27 de novembro desse ano.
O livro começa mencionando a data em que se situa o evento imaginário : « Un étranger, arrivé dans la principale cité de l 'Illinois le matin du 3 avril de 1897, aurait pu, à bon droit, se considérer comme le favori du Dieu des voyageurs ». Volto a frisar que a revista Cosmopolis, com Un Coup de dés, saiu em 4 de maio de 1897. A história do romance mais que extraordinário de Verne tem o seguinte tema. Um milionário norte-americano excêntrico prevê, em testamento, que sua fortuna seja distribuída em herança por meio de um jogo conhecido como « jeu de l'oie » (jogo do ganso), jogo clássico de azar, em formato de espiral, com 63 casas. Cada uma corresponde a um dos cinquenta estados da União, catorze delas repetindo o de Illinois. Os concorrentes serão seis, determinados por escolha aleatória, e mais um, oculto sob a sigla de XKZ. Ao lance de dois dados, terão por obrigação viajar para as cidades que forem sorteadas, e deverão aguardar por prazo determinado novo, indo ao acaso, de estado em estado. Segundo o testador, um jogo no qual « le pur et seul hasard dirige ceux qui luttent sur le champ de bataille pour remporter la victoire ». A narrativa, com os seus incidentes minuciosamente datados se passa entre os dias 3 de abril e 15 de julho, com os concorrentes, sorteados de dois em dois dias, partindo de 1o a 13 de maio de 1897.
De uma carta de Verne a Hetzel, 28 de julho de 1898 : « j'en ai absolument fini avec les enfants qui cherchent leur père, les pères qui cherchent leurs enfants, les femmes qui cherchent leurs maris, etc. » Verne parece ter a intenção de concentrar-se mais do que nunca na estrutura aleatória do seu romance, ainda que certamente a pressão de Hetzel o tenha compelido inevitavelmente ao “happy end”.
Conforme acentua Arthur B. Evans, no estudo “Jules Verne and The French Literary Canon”, incluído no já citado Jules Verne — Narratives of Modernity) : « Embora seus romances estejam cheios de referências a Dieu, la Providence e le Créateur, eles igualmente citam le hasard, le destin e la fatalité como as forças ocultas que governam os atos dos heróis e vilões » [11].
« Hasard » é, efetivamente, palavra-tema relevante, pervadindo todas as suas obras. É talvez a chave última que justifica as « verossimilhanças » inverossímeis que fazem com que as extraordinárias aventuras de Jules Verne se tornem possíveis e não totalmente imaginárias.
A palavra « Hasard » está presente, com maior ou menor qualificação e intensidade, em praticamente todos os livros de Verne, e suas concessões à Deus ou à Providência me parecem ser um modo de contemporizar com a pressão do editor Hetzel, que cuidava de amenizar a irreligiosidade fundamental de Verne (v. em L'Île à hélice a violenta sátira à « guerra civil » entre católicos e protestantes, que leva à destruição da ilha artificial do futuro). Hetzel, como é conhecido de todos, recusou o manuscrito de Paris au XXe siècle, mostrando-se um vigilante censor da obra de Verne, apesar de todo o grande apreço que lhe tinha. E Verne, como se sabe, chegou a modificar a identidade de Nemo para atender às restrições do editor.
Alguns exemplos significativos :
AVENTURES DU CAPITAINE HATTERAS
— Vous êtes, répondit Hatteras d'une voix à peine contenue, vous êtes un homme qui prétend accorder au hasard et à la science une même part de gloire ! Votre capitaine américain s'est avancé loin dans le nord, mais le hasard seul...
— Le hasard ! s'écria Altamont ; vous osez dire que Kane n'est pas redevable à son énergie et à son savoir de cette grande découverte ?
— Je dis, répliqua Hatteras, que ce nom de Kane n'est pas un nom à prononcer das un pays illustré par les Parry, les Franklin, les Ross, les Belcher, les Penny, dans ces mers qui ont livré le passage du nord-ouest à l'anglais Mac Clure...
— Mac Clure !, risposta vivement l'Américain, vous citez cet homme et vous vous élevez contre les bénéfices du hasard ? N'est pas le hasard seul qui l'a favorisé ?
PARIS AU XXe SIÈCLE
— Oui, je ris, répondit Michel, car il ne m'arrivera jamais d'avoir même un mètre cube de terre ! à moins que le hasard...
— Comment ! le hasard ! s'écria le pianiste ! voilà pourtant un mot que tu ne comprends pas, et de qui tu te sers !
— Que veux tu dire ?
— Je veux dire que hasard vient d'un mot arabe, et ce mot signifie difficile ! Pas autre chose ; donc en ce monde, il n'y a que des difficultés à vaincre ! et avec de la persévérance, et de l'intelligence, on s'en tire !
LE SPHINX DES GLACES
Mon projet était de rester quelques semaines de la belle saison dans cette dernière île. De là, je comptais repartir pour le Connecticut. Cependant je n'oubliais pas de réserver la part qui revient au hasard dans les propositions humaines, car il est sage, comme l'a dit Edgar Poe, de toujours « calculer avec l'imprévu, l'innatendu, l'inconcevable, que les faits collatéraux, contingents, fortuits, accidentels, méritent d'obtenir une très large part, et que le hasard doit incessament être la matière d'un calcul rigoureux ».
Não há de ser só o acaso que faz aproximar os dois escritores franceses dos mesmos temas e das mesmas visões, ainda que por vias diversas e até mesmo opostas. O tardio reconhecimento de ambos, nos estudos de maior profundidade e espessura literária, um por sua suposta obscuridade e outro por sua suposta comunicabilidade, aponta para uma compreensão de suas obras sob perspectiva mais abragente. A primeira edição completa, projetada por Mallarmé para o seu Un Coup de dés estava prevista para apenas 200 exemplares. Mallarmé desejava que o seu poema fosse impresso com a tipografia Didot, conforme projeto que confiou ao editor Vollard, e a composição começou com essa tipologia, caracterizada pela serifa delgadíssima. Chegou a ter numerosas provas (há quem afirme que já se encontraram treze) que o poeta mostrava a alguns amigos e distribuia entre eles. Alfred Firmin-Didot (1828-1913), descendente da famosa família de impressores, a quem as provas mallarmaicas eram implacavelmente remetidas, achava que Un Coup de dés era « obra de um louco », e relutava em publicá-la. Vollard acabou desistindo. Por acaso, os tipos Didot aparecem na palavra « Excentrique », em semicírculo, no título da página de rosto da primeira edição de Le Testament d'un excentrique.
A edição de Un Coup de dés, da NRF, de 1914, não respeitou as instruções tipográficas de Mallarmé, e adotou os tipos Elzevir, de que Mallarmé não gostava. Faltam-me dados sobre a tiragem dessa edição. Mas ela só foi reimpressa em 1940. A terceira edição, de que tenho um exemplar, saiu em 1954. Alguns dos menos conhecidos e mais ousados romances de Verne só foram editados, volto a sublinhar, a partir da década de 1960.
Em 1962 foi lançado o livro Mobile de Michel Butor. Saudei-o, no ano seguinte, no estudo « A Prosa é Móbile », depois incluido no livro À Margem da Margem. Analisei então o texto tipográfico espacial e colagístico de Butor, sob a ótica do « lance de dados » mallarmeano e da linguagem ideogrâmica dos Cantos de Ezra Pound. Vejo agora que essa prosa experimental e aleatória, subtitulada — é bom lembrar — « Étude pour une représentation des États-Unis », há de ter recebido a influência do « testamento de um excêntrico ». É o que observa Marie-Héléne Huet, em seu prefácio a esse romance, na publicação das obras completas de Jules Verne pela edição Pléiade, sendo certo que o Testament de Verne já estava embrionariamente desenhado no romance Le Tour du monde en quatre-vingts jours, como a ensaísta o demonstrou em sua monografia, Around the world in Eighty Spaces [12], na qual, entre outras consideracões, publica um anúncio da editora Hetzel, de 1873, onde os incidentes do « jogo entre a matemática e o acaso » aparecem projetados graficamente nas casas de um Jeu de l'Oie. A homonímia de muitas cidades dos Estados Unidos, importante elemento estrutural de Mobile, também enfatizado por Marie-Hélène Huet, está explicitamente prevista no capítulo intitulado « La péregrination d'Harris Y. Kimbale », onde Verne se refere aos homônimos da cidade de Jackson, « quatre au Michigan, au Mississipi, au Tenessee et dans Ohio, et deux Jacksonville, l'une dans Illinois, l'autre dans Floride, à plusieurs milliers de milles de la Californie ».
As últimas décadas, aguçadas pelo enciclopedismo digital, nos propiciam dados que não tínhamos antes, reunidos num espectro amplo que nos ajuda a « ver com olhos novos » e « livres » o obscuro e o claro de muitos enquadramentos canonicamente limitados. Dados os dados, fica proposta, para a nossa perplexidade, mais esta linguaviagem extraordinária, que reúne sincronicamente — coincidência ? Ironia ? Sátira ? — as obras de dois grandes autores antitéticos, afetados pelo mesmo singular tema do acaso.
LE COUP DE HATTERAS — HOMMAGE À MALLARMÉ VERNE
NOTES
- Michel Brix, « Baudelaire, disciple d'Edgar Poe ? ». Romantisme, 2003, n° 122. Maîtres et disciples, p. 55-69. ^
- Musée des Familles. Tomo 31. No 7, abril de 1864, pp. 193-208. ^
- Michel Butor. Répertoire 1 — « Le Point suprême et l'âge d'or à travers quelques œuvres de Jules Verne ». Paris, Editions de Minuit, 1960 [1949]. ^
- Roland Barthes. Mythologies — « Nautilus et le Bateau ivre ». Paris, Editions du Seuil, 1957. De fato, embora sem a repercussão do artigo de Barthes, a relação entre o Nautilus e o « Bateau ivre » já havia sido observada, em 1954, por Jacques-Henri Bornecque : « Le sous-marin ivre de Rimbaud », Revue des sciences humaines, No 73, janvier-mars 1954, p. 57-66. Roland Barthes baseou-se neste artigo, conforme esclarece Jean-Michel Margot. ^
- Jules Verne — Narratives of Modernity, edited by Edmund Smyth, essays by him, Arthur B. Evans, Daniel Compère, Timoty
Unwin, Saran Capitanio, David Platten, David Meaken, Trevor Harris, Andrew Hugill, Tetty Hale, William Butcher. Liverpool University
Press, 2000.
http://www.theses.paris-sorbonne.fr/these.thierry.roger.pdf
Thierry Roger — L'archive du « Coup de Dés ». Etude critique de la réception d'« Un coup de dés jamais n'abolira le hasard » de Stéphane Mallarmé, 1897-2007. Paris, Classiques Garnier, juillet 2010. ^ -
https://fr.wikipedia.org/wiki/Magasin_d%27%C3%A9ducation_et_de_r%C3%A9cr%C3%A9ation
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k71351c.r=%22coup+de+des%22+mallarme.langPT ^ - Timothy Unwin. Jules Verne — Journeys in Writing. Liverpool University Press, 2005, p. 32. ^
- Marie-Hélène Huet. L'Histoire des Voyages Extraordinaires. Essai sur l'oeuvre de Jules Verne. Paris, Minard, 1973, p. 167. ^
- https://fr.wikipedia.org/wiki/Le_Testament_d'un_excentrique. Segundo foi apurado, o texto em questão é de Michel Kotalrek, publicado anteriormente sob o pseudônimo de Hyperbone. Falecido há dois anos, tem dois artigos publicados na revista J.V., do antigo Centro de documentação Jules Verne. Dados fornecidos por Garmt de Vries e Volker Dehs. ^
- Marie-Hélène Huet. « Introduction à Le Testament d'un Excentrique », t. IV, Oeuvres Complètes de Jules Verne, Pléiade, Paris, 2016. ^
- Ob. cit., p. 19. ^
- Marie-Hélène Huet. Around the World in Eighty Spaces. Princeton University Library Chronicle, vol. LXXIV, No 3, Spring 2013. ^